24 abril 2015

Arautos da moralidade



A classificação de Botafogo e Vasco para a final do Campeonato Carioca desencadeou uma reação violenta por parte de Flamengo e Fluminense, amplamente apoiados pela imprensa esportiva. Alegam um complô, e o endeusado presidente rubronegro chegou a dizer algo na linha do "eu já sabia". Coisas diferentes são misturadas na mesma salada e pronto: Botafogo e Vasco foram desqualificados moralmente por terem impedido a final tão desejada. Vamos recolocar as coisas em seus devidos lugares.

Gol da rodada... com a mão. Ninguém reclamou
Primeiro, um parêntese: na verdade, as empresas de comunicação veem a área esportiva como mero entretenimento, não seguindo os princípios jornalísticos adotados em outras áreas. Daí tantos animadores de auditório e gente sem o menor preparo comentando sobre futebol. Portanto, quando nos referirmos a imprensa esportiva, entendam de maneira diferente do que é a imprensa em outros segmentos.

Nessa discussão sobre arbitragem, é importante diferenciar erros pontuais, decorrentes de má qualidade de nossa péssima arbitragem, de erros sistemáticos, aqueles erros em sequência sempre para o mesmo lado, seja na mesma competição ou ao longo de um período. Também é importante entendermos as relações extracampos dos clubes e seus dirigentes. Mas comecemos olhando melhor apenas para o atual certame.


Campeonato Carioca 2015

Desde que a dupla Fla-Flu começou um bate-boca com a Ferj por questões econômicas, a imprensa esportiva encampou essa "briga" deles como sendo algo maior, uma suposta luta pela moralidade do futebol, o recorrente "Bem contra o Mal" que vivemos atualmente. Daí, começaram a incluir neste contexto a arbitragem, que supostamente passaria a prejudicar de forma sistemática essas equipes.

O que se viu em campo, entretanto, foi o oposto. Na última rodada da fase classificatória, Botafogo e Flamengo disputavam o título da Taça Guanabara. E só havia disputa naquele momento porque erros de arbitragem mantiveram o Flamengo com chance de título:

Um dos gols mal anulados que custaram dois pontos ao Botafogo.

Volta Redonda 2 x 2 Botafogo: o Botafogo teve um gol de Fernandes mal anulado quando vencia por 2 a 1, logo antes de sofrer o empate. No primeiro tempo, outro gol mal anulado, do lateral Gilberto.

Chegou perto da linha, é gol

Flamengo 1 x 1 Madureira: o gol do Flamengo foi validado mesmo sem a bola ter entrado.

Graças a esses dois resultados, o Botafogo deixou de somar dois pontos e o flamengo somou um a mais. Ou seja, três pontos de diferença em favor do Flamengo por erros de arbitragem. Não fosse por isso e o Botafogo teria assegurado o título com facilidade.

De quebra, esse empate duvidoso em favor do Flamengo contra o Madureira tirou dois pontos da equipe suburbana. Esses dois pontos eliminariam o Fluminense, que chegou à última rodada podendo se classificar.

Fluminense 3 x 1 Botafogo: neste jogo, o Fluminense foi amplamente superior e mereceu a vitória. Porém, a vitória só foi garantida num gol em que Fred dominou a bola com a mão. O que disse nossa vigilante imprensa esportiva sobre esse gol? Bem, disse que foi o mais bonito da rodada...

Alguém há de lembrar dos três pênaltis para o Vasco no mesmo jogo. Também acho bizarro, mas há um detalhe: o Vasco perdeu o jogo por 5 a 4. Logo, esses pênaltis só serviram para Gilberto subir na artilharia.

Não considero nenhum desses erros absurdos, dado que nossa arbitragem é indigente. Mas se havia um complô em favor dos "aliados da Ferj" Botafogo, Vasco e Madureira, como é possível que tais erros tenham prejudicado Botafogo e Madureira em favor de Flamengo e Fluminense? Se havia complô, não poderiam simplesmente não assinalar gol para o Flamengo sem que a bola tenha entrado? Não poderiam ter validado pelo menos um dos gols mal anulados do Botafogo contra o Volta Redonda?


Semifinais do Carioca 2015

Graças à tunga sofrida pelo Madureira, o Fluminense se classificou, e os confrontos das semifinais seriam Botafogo e Fluminense de um lado, Flamengo e Vasco do outro. A essa altura, já havia um movimento "pela moralidade" bancado pela deplorável imprensa esportiva. 

Daí chegamos à seguinte situação: qualquer erro em favor de Botafogo ou Vasco seria visto como parte um grande esquema. Qualquer erro contra seria minimizado ou ignorado. E foi exatamente o que aconteceu. 

Após os primeiros jogos, o saldo foi que Flamengo e Fluminense foram amplamente beneficiados por arbitragens ruins. 

Fluminense 2 x 1 Botafogo: o Botafogo deixou de ter dois pênaltis assinalados contra o Fluminense. Um deles foi cometido por Jean, que deliberadamente pôs a mão na bola, em jogada semelhante ao bem marcado pênalti cometido por Gilberto. O outro foi cometido por Fred em Bill. Perguntas: houvesse esquema, o árbitro não poderia ter marcado esses dois pênaltis? Fred fez alguma denúncia sobre esses erros? A imprensa esportiva criticou o árbitro? Nada foi dito, e o juiz foi até muito elogiado pelos profissionais da imprensa.

Vasco 0 x 0 Flamengo: na outra semifinal, novamente o Vasco foi prejudicado contra o Flamengo. A expulsão de Jonas no começo do jogo 1 poderia ser decisiva não apenas para aquele jogo, mas para todo o confronto. Algum dirigente do Flamengo veio cobrar moralidade? Alguém denunciou esquema pró-Flamengo? Alguém relacionou a arbitragem com interferência da Federação? Não, e por que não? Porque os discursos já estavam prontos antes, mas os fatos teimaram em desmenti-los.

Nos jogos de volta, novos erros de arbitragem, mas dessa vez ao contrário.

Botafogo 2 x 1 Fluminense: o primeiro gol do Botafogo sai de uma jogada em que havia impedimento.

Flamengo 0 x 1 Vasco: o gol do Vasco se deu num pênalti muito discutível.

E as reações, foram as mesmas que tiveram após os erros dos jogos de ida? Os erros foram considerados comuns, como parte do futebol? Não. Agora os erros eram parte de um esquema da Federação em favor de Botafogo e Fluminense. Agora os arautos da moralidade, Flamengo e Fluminense, estavam sendo prejudicados por uma máfia que se uniu para prejudicá-los. Não faltaram manchetes na linha "a final da Ferj". Um jornalista-torcedor da Fox e de O Globo e um jornalista-torcedor da ESPN quase tiveram síncopes ao vivo ao conclamarem uma revolução no futebol após as eliminações dos santos clubes.

O curioso no caso do Vasco é que na opinião da maioria o pênalti não aconteceu. Mas isso significa um esquema, visto que o Flamengo fora recorrentemente beneficiado antes? E que tal essa imagem que circula, mostrando que o Árbitro de Fla x Vasco já apitou pênalti em lance parecido na final de 2009 a favor do Flamengo e contra o Botafogo?



Novamente perguntamos: o que disseram tais figuras após os jogos de ida das semifinais? Nada. Ignoraram os erros do jogo do Botafogo, e minimizaram os do jogo do Vasco. Ninguém falou em esquema ou complô, mesmo sendo evidente a recorrência de erros em favor do Flamengo ao longo dos anos.

Nem o pessoal do Botafogo reclamou dos dois pênaltis não marcados no jogo 1, mas o pessoal do Fluminense e a imprensa fizeram um escarcéu com o impedimento não marcado do jogo 2. Então façamos o seguinte: deem um dos pênaltis do jogo 1 ao Botafogo e fiquem com o gol impedido do jogo 2. Resultado: 2 a 2 e 1 a 1, Botafogo classificado sem pênaltis. Por mim, fica até melhor.


Desonestidade intelectual ou excesso de paixão clubística

De toda forma, resta claro que a tese de esquema ou complô soa absurda diante de tantos erros em favor dos supostos prejudicados. Atribuir todos os erros em favor de Botafogo e Vasco como parte de um esquema, e ao mesmo tempo ignorar erros tão ou mais relevantes em favor de Fla e Flu, só pode ser desonestidade intelectual ou excesso de paixão clubística, o que não cabe a profissionais do esporte nem a profissionais da imprensa.


"Arautos da moralidade" não se entendem


Quando vemos Flamengo e Fluminense subitamente se "opondo" à Ferj, é importante olharmos para suas atitudes no passado recente para avaliarmos a credibilidade do discurso de momento. Quem luta "por um futebol melhor", não pode agir de forma casuística conforme os interesses de momento.

Por isso, é emblemática a discussão que a dupla Fla-Flu teve antes de um confronto entre as equipes pelo Campeonato Brasileiro em setembro do ano passado, conforme reportagem Arbitragem coloca Fla e Flu em confronto às vésperas do clássico:


Mário Bittencourt cita erros de arbitragem a favor do Flamengo (Foto: Nelson Perez/Fluminense FC)

No jogo contra o Palmeiras, o Flamengo marcou um gol depois de um domínio com a mão de Eduardo da Silva. O clube paulista ainda reclamou pênalti de João Paulo em Henrique. Essa situação provocou uma declaração de Mário Bittencourt, vice de futebol do Fluminense em entrevista coletiva na sexta-feira.
- Existe sempre uma preocupação com qualquer situação. Principalmente com a arbitragem. O nível da arbitragem no ponto de vista técnico é ruim. Preciso acreditar que seja uma coincidência. Principalmente no caso do Flamengo. Realmente os erros são em sequência. Nos últimos jogos, nenhuma sequência de erros contrários a ele. Vamos para o jogo com a cabeça tranquila - afirmou Mário.



Alexandre Wrobel fala em pressão contra o Flamengo (Foto: Cezar Loureiro / Agência O Globo)

A resposta do Flamengo aconteceu na manhã deste sábado. Vice de futebol do clube, Alexandre Wrobel fez questão de se manifestar e contrariar as declarações de Bittencourt. Ele, inclusive, fez uma ironia ao rival, mas sem citar o motivo, que seria referente à atuação do dirigente como advogado nas audiências no STJD que levaram a Portuguesa para a Série B no lugar que seria inicialmente do Fluminense.
- Chega a ser irônico esse questionamento vindo de quem vem. Tirem suas próprias conclusões. Só quero pontuar a posição do Flamengo. O clube repudia essa tentativa de pressão de forma veemente. O Flamengo foi beneficiado e prejudicado nesse campeonato como todos os outros clubes - disse Wrobel.


Como se vê, há pouco mais de seis meses os atuais "arautos da moralidade" trocavam insinuações sobre qual dos dois seria favorecido por esquema de arbitragem.

E tem quem acredite que "lutam por um futebol melhor"...



*Conforme a disponibilidade de tempo, escreveremos sobre a diferença entre erros de arbitragem pontuais e sistemáticos, e sobre as relações extracampo de clubes com federações e outras entidades.

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